quarta-feira, março 25, 2009




Abedula


POR : IVAN CEZAR INEU CHAVES

Uns dizem que foi lá pelo ano de mil novecentos e seis, outros juram que foi no mínimo dez anos mais tarde,o certo é que nossa “estória” começa lá no início do século XX, entre a primeira e a segunda década dos anos mil e novecentos e uns , quando desembarcou em Uruguaiana um Palestino muito desajeitado e entristecido pelos efeitos da migração, mas que estava eufórico com as possibilidades do futuro , sobretudo porque trazia algumas economias para montar um negócio na próspera fronteira do Brasil com a Argentina.

Eram várias moedas de Libra Esterlina, que trouxe carregadas numa bolsa de pano costurada no interior das cuecas , e que seu tio avô – Ibrahim – lhe havia presenteado para que abandonasse o Oriente Médio, o quanto antes, já que o traumatizado velho havia perdido sua esposa e seu único filho durante a invasão turca e queria que o sobrinho fosse buscar vida nova , longe da guerra e das hostilidades que rondam aquele canto do mundo desde os primórdios da civilização.

Era uma época em que no interior havia muito pouca qualificação nos serviços públicos e vigorava o velho ditado popular “em terra de cego, vesgo é Rei” , o certo é que nosso personagem logo foi vítima disso, pois ao se dirigir ao Cartório para obter sua “Carteira Modelo Quatro”, que naquele tempo era o documento que franqueava o trabalho e residência a estrangeiros em zona de fronteira, o funcionário ao tentar “aportuguesar” o nome do infeliz árabe, o documentou com o nome de Abedula .

Durante todos os anos que se seguiram, o árabe esbravejava quando os provocadores chegavam a seu estabelecimento, que já havia se tornado ponto de encontro de tudo quanto era a espécie de gente , e conhecedores das artimanhas para vê-lo irritado e em fúria iam logo atacando – “ e aí turco??” , ao que ele prontamente respondia – “turco não, libanês” . Aliás, era comum que os jordanianos e os palestinos mentissem que eram sírios ou libaneses, pois acreditavam que isso lhes conferia mais respeitabilidade. E a provocação logo atingia o apogeu : - “tudo bem seu Abedula?” – Não é abedula, é Abdallah” , e aí o coitado contava sempre a mesma história – “aquele gringo burro trocou o nome de Abdallah”...

Certa ocasião, Zé Mauro e o alemão Klaus, dois contrabandistas de couro e charque, que seguidamente visitavam a região do comércio, resolveram aplicar uma no Abedula e contrataram um sujeito conhecido como “Bico Doce” devido a sua fama de mulherengo, mentiroso e chegado a destilados nobres – uma espécie de estelionatário rudimentar – o papel dele era sair de dentro da repartição nos minutos finais do expediente.

Exatamente às 17:50 , faltando apenas dez minutos para o encerramento do expediente, alemão Klaus e Zé Mauro estacionaram o Ford Modelo “A” na esquina do prédio da repartição , ante o olhar ansioso de Abdallah no banco traseiro do veículo. – “Calma diziam, o encontro tem de ser do lado de fora , pois “o homem” não pode correr riscos.” - Cinco minutos depois, saiu do prédio um homem vestindo um impecável paletó preto, gravata de borboleta, entrou no carro e saíram pelas ruas de Uruguaiana. Ao final de alguns minutos, desceu o elegante indivíduo carregando um envelope com dinheiro , boa parte das economias de Abdallah iam-se com aquela “autoridade”, mas ele estava feliz, afinal iria recuperar seu nome e em poucos dias receber documentos novos. Voltaria a ter sua identidade !

Generosos, e muito satisfeitos pela ajuda ao “amigo”, a dupla alemão Klaus e Zé Mauro convidaram o árabe para comemorar comendo um churrasco – tipo “parrillada” – no outro lado da fronteira , na cidade argentina de Libres . - "Não se preocupe é tudo por nossa conta ... " o que deixou ainda mais eufórico o agora feliz Abdallah . - "Daqui a duas horas passamos para pega-lo ..."

Saíram da frente do estabelecimento e foram direto para a Pensão da Tia Benta, conhecida por hospedar todos os malandros que chegavam à fronteira, onde os aguardava já de malas prontas o “Bico Doce” – foi só o tempo de ratear o dinheiro - e levar o vigarista até a Gare onde embarcou num trem com destino a Santa Maria, via Alegrete e Cacequi. A noite, regada a vinhos de Mendoza e carnes nobres da Província de Santa Fé , terminou com o Abdallah embriagado, dormindo sono profundo, e sem imaginar que acordaria de manhã cedo bem mais pobre ... e continuaria ABEDULA ...

2 comentários:

Beatriz disse...

Essa facilidade interativa aqui, longe dos territórios de raiz, é muito linda mas israelenses e muçulmanos, ambos, têm razão.
No exílio tentdemos à ternura, amolecemos. Afinal, estamos frágeis. Lá, a defesa da terra, é força que fragiliza, mas é luta.

Doroni Hilgenberg disse...

Oi Ivan,
Que conto!
Adorei o enredo, comovente e dvertido ao mesmo tempo.
esse pessoal não perde uma ainda mais quando se trata de gringos
e como saiu caro este nome...

bjs